Cozinhando Discografias: Os Mutantes

/ Por: Cleber Facchi 09/09/2013

A seção Cozinhando Discografias consiste basicamente em falar de todos os álbuns de um artista ignorando a ordem cronológica dos lançamentos. E qual o critério usado então? A resposta é simples, mas o método não: a qualidade. Dentro desse parâmetro temos uma série de fatores determinantes envolvidos, que vão da recepção crítica do disco no mercado fonográfico, além, claro, dentro da própria trajetória do grupo e seus anteriores projetos. Vale ressaltar que além da equipe do Miojo Indie, outros blogs parceiros foram convidados para suas específicas opiniões sobre cada um dos trabalhos, tornando o resultado da lista muito mais democrático e pontual.

Nenhum banda (nacional ou estrangeira) parece capaz de replicar o catálogo de sons, experiências e exageros que definem a obra d’Os Mutantes. Formado em 1966 na cidade de São Paulo, o grupo trouxe nas experiências lisérgicas de Arnaldo Baptista, Rita Lee e Sérgio Dias o princípio para uma obra marcada pela psicodelia e o efeito cênico. Inspirados em Beatles e todas as transformações que impulsionavam a música pop naquele momento, a banda fez nascer obras como A Divina Comédia, Jardim Elétrico e Tecnicolor, conquistando o respeito (e o fascínio) tanto em solo brasileiro como por parte do público estrangeiro. Em hiato desde o fim dos anos 1970, a banda regressou em 2006 para a exposição Tropicália – A Revolution in Brazilian Culture, no Barbican Hall, em Londres, reforçando o louvor do público em torno da obra do grupo. Mais novos escolhidos a participar do Cozinhando Discografias, a banda teve os 10 álbuns de estúdio analisados do pior para o melhor, sendo um bom princípio para quem ainda desconhece a obra do grupo.

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Os Mutantes

#10. Haih or Amortecedor
(2009, ANTI-)

Mais de três décadas em silêncio e Os Mutantes regressariam em 2009 sob forte expectativa do público. Sequência ao espetáculo preparado para a exposição Tropicália – A Revolution in Brazilian Culture, de 2006, Haih or Amortecedor é a tentativa (falha) da banda paulistana em resgatar a velha essência abandonada na década de 1970. Aos comandos de Sérgio Dias, cada uma das 13 composições do álbum se manifestam como uma extensão da proposta deixada em Tudo Foi Feito pelo Sol, lançado em 1974. Com vocais divididos entre Dias, Fábio Recco e Bia Mendes, o registro é visivelmente uma tentativa em emular o passado do grupo, marca visível no aproveitamento de ideias – sonoras e líricas – que preenchem o disco em totalidade. Mesmo a participação ativa de Tom Zé na composição dos versos não exime a banda dos erros, efeito que converte o álbum em uma cópia preguiçosa de tudo o que o grupo conquistou no passado.

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Os Mutantes

#09. Fool Metal Jack
(2013, Krian Music Group)

Assumidamente planejado para o público estrangeiro, Fool Metal Jack, se desprende em quase totalidade dos versos em português para brincar com a lírica em inglês. Menos instável que o álbum anterior, o disco condensa em guitarras firmes e vozes quase agressivas um efeito de homogeneidade, estética que praticamente desenvolve todas as canções do álbum em um mesmo cenário musical. Ainda que músicas como Ganja Man e To Make It Beautiful reforcem a leveza da obra, quanto mais o ouvinte passeia pelo disco, mais sobrecargas de distorções se esparramam livremente, estabelecendo o princípio musical que orquestra todo o lançamento. Produzido e composto quase integralmente por Sérgio Dias, o registro é o segundo álbum da banda desde o regresso em 2006, sendo um regresso bem aproveitado em relação ao que foi proposto em 1974, com as experiências progressivas de Tudo Foi Feito pelo Sol. O título do trabalho é uma homenagem de Dias ao filme Full Metal Jacket (1987), de Stanley Kubrick.

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Os Mutantes

#08. Tudo Foi Feito pelo Sol
(1974, Polydor)

Em uma tentativa de dar continuidade ao trabalho da banda – agora desfalcada de Arnaldo Baptista, Liminha e do baterista Dinho -, Sérgio Dias entrou em estúdio no começo de 1974 para dar vida ao denso e extenso Tudo Foi Feito pelo Sol. Naturalmente centrado na fase progressiva da banda, o disco escapa da experimentação exposta em O A e o Z, ampliando a relação do “grupo” com o Soul e o Gospel em um esforço marcado pelo detalhe. Com uma presença ampla de pianos e sintetizadores, o álbum se expande em uma imensa tapeçaria instrumental entregue a pequenos improvisos, o que reforça a lenda de que o disco foi inteiro gravado em um só take. Enquanto faixas como Pitágoras reforçam o detalhismo conceitual do trabalho, outras como O Contrário de Nada é Nada regressam ao cenário de Jardim Elétrico (1971), arremessando o álbum e o próprio ouvinte para uma variedade de rumos. Seria o último trabalho da banda até o regresso em 2006.

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O A e O Z

#07. O A e o Z
(1992, Phillips)

Gravado em 1973, pouco tempo após a saída de Rita Lee, O A e o Z levou quase 20 anos até ser oficialmente lançado. Renegado pela Polydor – que não apenas detestou o resultado da obra, como demitiu a banda logo em seguida -, o álbum demonstra o fascínio do grupo pela proposta de bandas como Yes, Emerson, Lake & Palmer e outros veteranos do rock progressivo da época. Desenvolvido em cima de seis extensas canções, o disco se esparrama em meio a solos de guitarras, sintetizadores climáticos e a voz cada vez menos presente dos membros, o que reforça o aspecto instrumental da obra. Produzido sob o forte efeito de LSD e a mente perturbada de Arnaldo Baptista – em depressão por conta do fim do relacionamento com Rita Lee e consumido pela insanidade -, o álbum flutua em um limite impreciso de sons e vozes, base para o que cresce na estrutura de Hey Joe (com mais de 12 minutos) ou mesmo da própria faixa título. Engavetado, o disco só foi aparecer em 1992, quando o produtor Mayrton Bahia, atendendo a pedidos de Sérgio Dias, trouxe ao público o histórico registro.

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Os Mutantes

#06. Mutantes e Seus Cometas no País do Baurets
(1972, Polydor)

Lançado em 1972, Mutantes e Seus Cometas no País do Baurets é a entrada do grupo paulistano em um território cada vez mais distante da experimentação original e próximo da cena progressiva que crescia na época. Último trabalho da banda com a presença de Rita Lee, o disco subtrai a excentricidade ocasional em busca de um som compacto, acessível, o que de forma alguma distancia o grupo da genialidade dos álbuns que o precedem. São faixas como Vida de Cachorro, Rua Augusta e Dune Buggy, que aproximam o trio – além dos convidados Liminha (baixo) e Dinho Leme (bateria) – de uma proposta muito mais próxima do rock, tendência capaz de valorizar a presença das guitarras e pianos durante todo o álbum. Impulsionado pelo clássico Balada do Louco, o disco se divide abertamente em instantes de representação comercial (Posso Perder Minha Mulher…) e canções de ambientação progressiva, vide os quase dez minutos da faixa título. Alegando “diferenças musicais”, Rita Lee deixaria a banda pouco tempo após o lançamento do disco. Era apenas o começo do fim.

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Os Mutantes

#05. Tecnicolor
(2000, Universal)

Em 1970 Os Mutantes viviam sua melhor fase. A boa repercussão por parte do público, vendagens em alta e uma turnê extensa não custaram a aproximar o trio paulistano do cenário estrangeiro. Convidados a se apresentar pela Europa, a banda aproveitou a rápida passagem pela França para registrar Tecnicolor, primeiro registro do grupo em língua estrangeira. Coletânea de faixas apresentadas nos primeiros discos e canções desenvolvidas exclusivamente para a obra, o álbum produzido por Carl Holmes se divide entre versos em inglês, francês e espanhol, readequando velhos arranjos a um novo propósito. Estão lá clássicos como Baby, She’s My Shoo Shoo (A Minha Menina) e I Feel a Little Spaced Out (Ando Meio Desligado), composições que serviram para propagar a adoração do público sob a banda. Lançado somente em 2000, três décadas após o registro do trabalho, Tecnicolor serviu para reacender a chama da banda, que em poucos anos voltaria a se apresentar durante a exposição Tropicália – A Revolution in Brazilian Culture, no Barbican Hall, em Londres.

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Mutantes

#04. Mutantes
(1969, Polydor)

Mesmo hoje, poucas são as bandas capazes de assumir uma postura tão corajosa, debochada e ainda assim inventiva quanto Os Mutantes no fim dos anos 1960. Se durante a construção do primeiro disco as experimentações com o Rock davam a entender os possíveis rumos da banda, com o segundo registro em estúdio tudo mudou. Tão anárquico quanto os inventos anteriores do grupo, o álbum passeia por entre gêneros, temas e sons em uma medida de completo descaso com o ouvinte. Uma plena representação da insanidade (ou seria genialidade?) que ocupava a mente do trio formado por Sérgio Dias, Rita Lee e Arnaldo Baptista. Enquanto Não Vá se Perder por Aí era um resultado do típico rock proposto na época, Dois Mil e Um e suas passagens pela música caipira alteravam completamente essa ótica. À medida que o álbum se desenvolve, cresce com ele as invenções e exageros da banda, transformando o registro em um bloco de sons tão ou talvez até mais criativos do que tudo que ecoava fora do país.

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Os Mutantes

#03. Jardim Elétrico
(1971, Polydor)

Ponto de divisão entre a fase psicodélica (com A Divina Comédia, de 1970) e entrada em solo progressivo (a partir de Mutantes e Seus Cometas no País do Baurets, em 1972), Jardim Elétrico talvez seja a obra mais excêntrica e naturalmente libertadora d’Os Mutantes. Do rock efervescente que inaugura o trabalho com Top Top, passando pela melancolia condensada em Benvinda e Virgínia, aos momentos de pura experimentação, como Tecnicolor e El Justiceiro, cada instante do álbum força a capacidade do trio original em compor, cantar e tocar dentro de um exercício amplo e constante. Enquanto as vozes flutuam entre a essência confessa dos Beatles e toques expressivos de Soul Music, os instrumentos se perdem em doses apuradas de distorção (Jardim Elétrico), solos épicos (It’s Very Nice pra Xuxu) e até canções de puro conformo musical (Baby). Inicialmente pensado para o mercado estrangeiro, o álbum acumula parte expressiva do que seria lançado em Tecnicolor, obra que seria engavetada e resgatada somente anos mais tarde, no começo dos anos 2000.

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Os Mutantes

#02. Os Mutantes
(1968, Polydor)

O que não falta na produção nacional dos anos 1960/1970 são bandas apoiadas na obra dos Beatles. Artistas que, influenciados pela psicodelia assinada pelo grupo britânico, se acomodaram em uma massa de sons redundantes, exageradamente próximos da estética inaugurada pela banda. Instáveis, Os Mutantes, souberam como ir além dessa proposta. Com o autointitulado debut em 1968, Arnaldo Baptista, Rita Lee e Sérgio Dias podem até ter esbarrado uma série de referências firmadas em álbuns como Rubber Soul (1965) e Revolver (1966), porém, é na excentricidade do trio que a obra cresce com acerto. Da produção assinada por Manoel Barenbein aos arranjos de Rogério Duprat, cada faixa ecoa originalidade em uma atmosfera ainda mais ampla do que a exposta pelo quarteto inglês. Místico e provocante, o álbum segue até o último segundo em um jogo de vozes e colagens musicais inéditas para o cenário da época. Da crítica política que orquestra Panis et Circenses ao rock dançante de Minha Menina, da métrica curiosa na lírica de Bat Macumba ao efeito lisérgico-instável de Ave Gengis Khan, décadas de tendências musicais parecem diluídas no interior de cada faixa. Com versos assinados por Cateano Veloso, Gilberto Gil, Jorge Ben e outros compositores da época, o álbum se desprende da calmaria, rompendo com o óbvio a todo o instante.

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Os Mutantes

#01. A Divina Comédia ou Ando Meio Desligado
(1970, Polydor)

Um disco que perverte a própria essência da banda, assim é o terceiro registro em estúdio d’Os Mutantes, A Divina Comédia ou Ando Meio Desligado. Tão experimental quanto o antecessor Mutantes, de 1969, o álbum ameniza a diversidade de conceitos proclamados pelo grupo em cima de um verdadeiro arsenal de canções pop. São clássicos como Ando Meio Desligado, Hey Boy e Meu Refrigerador Não Funciona, canções que parecem absorver tudo o que circulava na música da época de forma a reestruturar os mesmos elementos em um ambiente de plena novidade. Com arranjos mais uma vez orquestrados por Rogério Duprat e produção coesa de Arnaldo Saccomani – que resgatou diversos elementos da produção psicodélica de Ronnie Von -, o disco parece amarrar todas as canções em um mesmo universo temático, aproveitando os ruídos, vozes e sons em uma estufa psicodélica quase hermética.

Brincando com os conceitos implantados em A Divina Comédia, de Dante Alighieri, o álbum abriga em faixas como Ave Lúcifer e Haleluia um forte teor de sátira religiosa, como se a banda percorresse todos os níveis do inferno até regressar iluminado ao fim da obra. Ainda que o debut, de 1968, seja um trabalho de ruptura em relação ao cenário musical da época – no Brasil ou lá fora -, é com este disco que a banda parece dona de um som autêntico, verdadeiramente próprio. Base para aquilo que Pato Fu, Marisa Monte e tantos outros artistas desenvolveriam com o mesmo cuidado décadas mais tarde, o álbum mergulha em um universo de camadas e diferentes preferências musicais, amarrando tudo em uma obra que mantém seus segredos prontos a serem desvendados ainda hoje.

Jornalista, criador do Música Instantânea e integrante do podcast Vamos Falar Sobre Música. Já passou por diferentes publicações de Editora Abril, foi editor de Cultura e Entretenimento no Huffington Post Brasil, colaborou com a Folha de S. Paulo e trabalhou com Brand Experience e Creative Copywriter em marcas como Itaú e QuintoAndar. Pai do Pudim, “ataca de DJ” nas horas vagas e adora ganhar discos de vinil de presente.

Jornalista, criador do Música Instantânea e integrante do podcast Vamos Falar Sobre Música. Já passou por diferentes publicações de Editora Abril, foi editor de Cultura e Entretenimento no Huffington Post Brasil, colaborou com a Folha de S. Paulo e trabalhou com Brand Experience e Creative Copywriter em marcas como Itaú e QuintoAndar. Pai do Pudim, “ataca de DJ” nas horas vagas e adora ganhar discos de vinil de presente.