Image
Críticas

Jards Macalé

: "Besta Fera"

Ano: 2019

Selo: Pommelo

Gênero: Experimental, Samba, Rock

Para quem gosta de: Elza Soares e Metá Metá

Ouça: Trevas e Longo Caminho do Sol

8.7
8.7

Crítica: “Besta Fera”, Jards Macalé

Ano: 2019

Selo: Pommelo

Gênero: Experimental, Samba, Rock

Para quem gosta de: Elza Soares e Metá Metá

Ouça: Trevas e Longo Caminho do Sol

/ Por: Cleber Facchi 11/02/2019

Soturna e atmosférica, Vampiro de Copacabana abre passagem para o ambiente de formas abstratas, delírios e poemas urbanos que escorrem da boca de Jards Macalé em Besta Fera (2019, Pommelo). “Ah, corpo no breu / Ah, dama da noite / Ah, caminho torto / Ah, olhos de sangue“, passeia a criatura das trevas pelo centro do Rio de Janeiro, mergulhando em uma paisagem noturna enquanto ruídos metálicos escapam da guitarra que respira e cresce ao fundo da canção. Versos semi-declamados que orientam e experiência do ouvinte durante toda a execução da obra, estímulo para a construção do primeiro álbum de inéditas do cantor e compositor carioca desde o ótimo O Q Faço É Música (1998).

Misto de passado e presente, o registro que conta com produção de Kiko Dinucci (Metá Metá) e Thomas Harres não apenas resgata a essência de Macalé, efeito do olhar curioso sobre os três primeiros registros do músico – Jards Macalé (1972), Aprender a Nadar (1974) e Contrastes (1977) –, como se entrega à ruptura e permanente senso de descoberta. “Eu sou aquele que ao passar dos anos / Cantando a minha lira maldizente / Torpezas do Brasil, vícios, enganos / E bem que os de cantar constantemente / Canto segunda vez na mesma lira / O mesmo assunto em pletro diferente“, reflete no samba torto que embala a faixa-título do disco. Versos sóbrios que indicam o desejo de mudança do compositor, resgatam trechos da obra de Gregório de Matos e ainda se abrem para o cavaquinho minucioso de Rodrigo Campos e o saxofone de Thiago França (Metá Metá).

Um ziguezaguear de ideias e experiências pessoais que ora mergulha em um ambienta caótico, ora se permite explorar um universo de emoções e sentimentos mundanos. Exemplo disso está no contrastado jogo entre Trevas e Buraco da Consolação. De um lado, a poesia política e pessimista da letra borbulhada por Macalé em uma bacia d’água, no outro, a melancolia dos versos compartilhados com o cantor e compositor Tim Bernardes (O Terno) em um doloroso ato de separação. “Chega, já era, vai fundo, vai pelo buraco da Consolação / Seu coração já é dela, melhor nem lutar, não tem mais salvação“, desaba enquanto arranjos de metais ganham forma aos poucos, crescendo em uma medida própria de tempo.

O mesmo jogo de ideias, quebras e curvas conceituais acaba se refletindo a cada novo movimento da obra. Instantes em que Macalé vai da parcial agitação, como em Pacto de Sangue e Tempo e Contratempo, ao doloroso recolhimento poético, em Obstáculos e Meu Amor Meu Cansaço. Um exercício dinâmico que se reflete de maneira ainda mais explícita em duas das principais colaborações do disco, Peixe, com Juçara Marçal, e Longo Caminho do Sol, encontro com o diretor artístico do disco, Romulo Fróes, e o coro de vozes da Nenê da Vila Matilde. Pouco mais de oito minutos em que o músico carioca vai de um ambiente contemplativo (“Amanheceu, voltou pro mar, quando entendeu o que a morte é“) à celebração em um cenário pós-apocalíptico (“Longo caminho do sol / Breve o caminho do chão / E o fogo do fogo dos suicidas“).

Tamanha turbulência criativa em nenhum momento interfere no comprometimento estético adotado logo na faixa de abertura do disco. São variações instrumentais que vão do samba torto ao rock em um precioso diálogo com o material entregue por Elza Soares em A Mulher do Fim do Mundo (2015) e Deus É Mulher (2018), efeito direto da presença de músicos que trabalharam em ambos os registros. Um som deliciosamente planejado, conceito que se reflete até a produção da climática Limite, faixa que conta com versos de Ava Rocha e parece desacelerar para a chegada da derradeira Valor, composição originalmente gravada pelo músico em fita cassete no início dos anos 1980.

Completo pela presença dos músicos Guilherme Held e Pedro Dantas, além de contar com a participação de nomes como Ariane Molina, Luê, Thai Halfed, Amilcar Rodrigues, Filipe Nader e Allan Abbadia, Besta Fera revela ao público um artista tão inventivo quanto em sua fase mais produtiva, no início dos anos 1970. Trata-se de uma obra turbulenta, forte, como uma fuga conceitual do recanto onde parte expressiva do álbum foi concebido, em um sítio na região de Penedo, na Serra da Mantiqueira. Ideias que se entrelaçam sem ordem aparente, indicando um parcial resgate criativo dos poemas e experiências acumuladas pelo músico carioca nas últimas duas ou mais décadas.


Jornalista, criador do Música Instantânea e integrante do podcast Vamos Falar Sobre Música. Já passou por diferentes publicações de Editora Abril, foi editor de Cultura e Entretenimento no Huffington Post Brasil, colaborou com a Folha de S. Paulo e trabalhou com Brand Experience e Creative Copywriter em marcas como Itaú e QuintoAndar. Pai do Pudim, “ataca de DJ” nas horas vagas e adora ganhar discos de vinil de presente.

Jornalista, criador do Música Instantânea e integrante do podcast Vamos Falar Sobre Música. Já passou por diferentes publicações de Editora Abril, foi editor de Cultura e Entretenimento no Huffington Post Brasil, colaborou com a Folha de S. Paulo e trabalhou com Brand Experience e Creative Copywriter em marcas como Itaú e QuintoAndar. Pai do Pudim, “ataca de DJ” nas horas vagas e adora ganhar discos de vinil de presente.