Disco: “Random Access Memories”, Daft Punk

/ Por: Cleber Facchi 17/05/2013

Daft Punk
French/Electronic/Disco
http://www.daftpunk.com/

 


Depois de libertar sua mente sobre o conceito de harmonia e da música estar correta, você pode fazer o que quiser. Então, ninguém me disse o que fazer, e não havia nenhum preconceito sobre o que fazer”. A frase do produtor italiano Giorgio Moroder no interior da música que leva seu nome parece representar com exatidão tudo aquilo que Thomas Bangalter e Guy-Manuel de Homem-Christo viveram nos últimos 20 anos. Passada a construção do cenário que apresentou o Daft Punk com Homework (1997), o ápice inventivo e o “conceito de harmonia” em Discovery (2001), além do reaproveitamento de ideias em Human After All (2005), o duo francês alcança o quarto registro em estúdio com um simples objetivo: se livrar dos próprios preceitos e experimentar.

Talvez estranho em uma primeira audição, Random Access Memories (2013, Columbia) parece desprezar tudo aquilo que a dupla construiu nas últimas duas décadas, retrocedendo de forma nostálgica em um instante que tem início no fim dos anos 1960. Como se em busca de um “recomeço”, a dupla vai de encontro à própria essência, firmando em bases primevas e na relação com veteranos como Nile Rodgers e o próprio Moroder um caminho que inevitavelmente se conecta aos instantes iniciais de Homework. Não se trata mais de fazer música Techno, Dance, House Music ou mesmo o próprio Pop que há tempos acompanha o duo, mas de vistar e compreender melhor a própria origem.

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Revelado em doses ao longo dos meses, RAM trouxe na série de documentários The Collaborators pistas sobre o que seria sustentado no decorrer da obra. Ainda que com o lançamento de Get Lucky uma relação inevitável com Discovery tenha sido criada, durante todo o tempo, a dupla – representada por seus convidados – nunca pareceu se distanciar do que é proposto nos mais de 70 minutos do novo disco. Claro que a expectativa criada ao longo de oito anos (desde o último registro em estúdio), somada à divulgação massiva, virais e a individualidade do ouvinte em esperar por um disco que ele quer ouvir, em poucos instantes virou como um balde de água fria para boa parte do público. Os indignados – à exemplo do que aconteceu com Justin Timberlake e The Knife -, não pouparam em despejar o rancor pela internet e redes sociais, entretanto, quem cedeu tempo ao tempo que o álbum exige encontrou em Random Access Memories um novo universo para o que parecia estático na obra do Daft Punk.

Do momento em que as harmonias crescentes de Give life back to music têm início, torna-se mais do que claro que os rumos da dupla são outros. Esqueça a exaltação de Rollin’ & Scratchin’, One More Time, Technologic ou qualquer projeto anterior ao presente disco. Existe um novo propósito nas mentes de Bangalter e Homem-Christo, um esforço menos sintético, como se a premissa dos robôs que ganham vida (algo discutido durante todo o último disco) finalmente fosse posta em prática. Dessa forma, o entendimento de um “álbum tocado” entra em prática, com a dupla (e seus colaboradores) preenchendo cada etapa do registro com um detalhismo convincente, feito para ser apreciado com parcimônia e em excesso.

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Assim como aconteceu com o Chromatics em Kill For Love (2012), RAM é um trabalho que visita o passado com curiosidade. Contrariando a ordem desse tipo de obra, o Daft Punk não faz do novo disco mais um exercício de “nostalgia não vivenciada”, mas um resgate coeso do que foi proclamado há três ou mais décadas. Mesmo que a escolha por instrumentos analógicos e todo um refinamento empoeirado sirva para aproximar a dupla da tão almejada essência, é no detalhismo de Touch, The game of love e Fragments of time que essa vontade se torna evidente. Há quem defenda que o álbum seja apenas um amontoado copioso de ideias – o que não deixa de ser verdade. Porém, depois de passar as últimas duas décadas sendo copiados por uma infinidade de artistas, nada mais justo para o duo do que mostrar ao público (e os pupilos) a própria inspiração.

Talvez o que incomode em uma primeira audição seja a disposição das faixas. Não partidário da linearidade de Discovery, o álbum se perde em contornos quase anti-climáticos, proposta evidente na excêntrica relação entre a faixa de abertura, Give Life Back to Music, e a “canção de encerramento” que é The Game Of Love, logo nos instantes iniciais do álbum. Todavia, mesmo a organização “inexata” da obra parece arquitetada. Como o próprio título aponta, o disco nada mais é do que um catálogo nostálgico, folheado em uma direção compreendida apenas pela dupla. Sendo assim, é possível desembarcar da experiência documental de Giorgio By Moroder na melancolia de Within, pular no rock oitentista de Julian Casablancas com Instant Crush (a melhor música que o The Strokes nunca lanço) e depois regressar aos anos 1970 com Lose Yourselft To Dance. Tudo isso sem que haja estranheza.

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Ao mesmo tempo em que encontra distanciamento nos trabalhos anteriores da dupla, o disco regressa a todo o instante à marcas específicas do que definiu a carreira do Daft Punk. É como se os Hits plásticos dos últimos discos fossem dissolvidos em uma proposta vintage, efeito claro nas guitarras de Instant crush, que imediatamente se conectam ao som de Aerodynamic, ou no groove de Lose yourself to dance, que mais parece uma versão retrô de Da Funk com Make Love. No meio dessa massa de sons reformulados, nostálgicos e ainda assim capazes de negar a própria origem, sobra tempo para que a dupla firme novidade em pontos específicos de nítido distanciamento. É o caso de Doin’ it right, excêntrica e coerente parceria com Noah Lennox (Panda Bear) e Contact, faixa que divide com exatidão as velharias do novo álbum e o teor robótico que apresentou a dupla nos anos 1990.

Por mais que James Murphy, The Knife, Cut Copy e tantos outros artistas tenham abastecido as pistas à sua maneira, o espaço conquistado pelo Daft Punk permanece intocado. Melhor representação disso está no debate e até comoção que um “simples disco” promoveu nas últimas semanas. Como acontece desde o lançamento de Homework, a obra de Bangalter e Homem-Christo parece encarada com desconfiança em início, seguida de compreensão e devoção ao final – exercício bem representado na lenta aceitação de Discovery ao longo da última década. Não diferente acontece com Random Access Memories, um trabalho que talvez assuste em um primeiro momento, mas que lentamente revela componentes tão cuidadosamente delineados que a fuga parece algo completamente improvável.

Até a inquieta pista de dança precisa respirar de vez em quando, e é exatamente isso que a dupla garante com o novo disco.

Random Access Memories (2013, Columbia)


Nota: 9.0
Para quem gosta de: Sébastien Tellier, Chromatics e Breakbot
Ouça: Lose Yourselft To Dance, Doin’ it Right e Touch

Jornalista, criador do Música Instantânea e integrante do podcast Vamos Falar Sobre Música. Já passou por diferentes publicações de Editora Abril, foi editor de Cultura e Entretenimento no Huffington Post Brasil, colaborou com a Folha de S. Paulo e trabalhou com Brand Experience e Creative Copywriter em marcas como Itaú e QuintoAndar. Pai do Pudim, “ataca de DJ” nas horas vagas e adora ganhar discos de vinil de presente.

Jornalista, criador do Música Instantânea e integrante do podcast Vamos Falar Sobre Música. Já passou por diferentes publicações de Editora Abril, foi editor de Cultura e Entretenimento no Huffington Post Brasil, colaborou com a Folha de S. Paulo e trabalhou com Brand Experience e Creative Copywriter em marcas como Itaú e QuintoAndar. Pai do Pudim, “ataca de DJ” nas horas vagas e adora ganhar discos de vinil de presente.