Disco: “Mental Surf”, Psilosamples

/ Por: Cleber Facchi 14/03/2012

Psilosamples
Brazilian/Electronic/Experimental
http://www.psilosamples.com/

Existe algo de nostálgico na maneira como o mineiro Zé Rolê desenvolve as diversificadas composições de sua obra. Uma estranha nostalgia que absorve o que há de mais doce nas antigas cantigas de roda, na música brasileira de raiz e em referências muitas vezes esquecidas da cultura pátria. Amarrando todas essas múltiplas tonalidades em um pacote eletrônico (que jamais abandona a conexão com a estrutura orgânica), o produtor apresenta o rico Mental Surf (2012, Desmonta), registro que mergulha fundo na cultura nacional, sem que para isso precise abusar de recortes clichês da nossa música ou características nacionais típicas de sons montados para a exportação.

Longe do aspecto tímido que circundava o primeiro grande trabalho do artista em 2008 – o também versátil As Aventuras de Zé no Planeta Roça -, com o novo projeto o artista de Pouso Alegre, Minas Gerais faz nascer um trabalho que não apenas resgata a boa música de outras épocas, como garante novo e satisfatório sentido à ela. Em tempos de supervalorização da música brasileira – com estrangeiros de diversas partes do mundo maximizando a figura de Michel Teló e o “hit” Ai se eu te pego -, Zé é quem realmente traz valor e consistência aos sons nacionais, visitando a produção sertaneja de tempos remotos, os tons regionalistas de diversos cantos do país e retratos sonoros que só não foram esquecidos pois se armazenaram na mente e nos discos de dados do produtor.

Correndo o risco de perverter ou manchar elementos tão distintos da nossa música, Rolê (ou Psilosamples como assina em seus trabalhos) pontua com parcimônia harmonias de sanfonas e sequências percussivas com beats sofisticados e loopings certeiros de música eletrônica. Dessa forma, o produtor garante novidade ou talvez um novo olhar aos velhos sons captados nos sertões do Brasil. Passeando pelo interior e incorporando sons da cidade grande, o mineiro alcança uma medida própria, talvez próxima do que DJ Dolores, Nego Moçambique e tantos outros já haviam experimentado em outras épocas, mas sempre coerente e de maneira lógica, agradável.

Com os ouvidos atentos aos invasivos sons estrangeiros – principalmente os relacionados ao minimalismo britânico -, Zé cultiva de maneira lenta e ao seu próprio tempo um registro complexo. Um recorte apurado de centenas de samples, ruídos, vozes e formas musicais quase imperceptíveis em uma rápida audição, transformando as curtíssimas nove faixas do trabalho em elementos de uma nova e riquíssima biosfera musical. O cricrilar dos grilos, o canto dos pássaros ou mesmo as mínimas frações de presença humana no trabalho fazem que com o disco se projete como um achado vivo, com as faixas respirando e se movimentando em uma medida sonora racionalmente própria e peculiar.

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Por conta da delicadeza que ocupa todos os espaços da obra e o esmero em trabalhar cada batida ou sample de maneira minuciosa, o trabalho de Psilosamples muito se aproxima da obra do inglês Kieran Hebden, que entre outros projetos assume com astúcia toda a riqueza de detalhes do Four Tet. De fato, muito do que caracteriza a estrutura musical de faixas como Eterna Criança do Mato e Bom Dia Menina Pelada parece vir diretamente do que Hebdan produziu em alguns de seus discos, como Rounds de 2005 e principalmente There Is Love in You de 2010. Enquanto o britânico desenvolve as composições exatas para o melancólico cenário cinza das grandes cidades, Rolê parece sair do meio do mato com uma caça de sons e formas musicais típicos do panorama rural.

Embora hermético em alguns instantes – o tom excessivamente minimalista de OK, Zé da Roça, por exemplo. parece tirar o brilho e aspecto crescente do disco -, Mental Surf é um trabalho que em diversas vezes cresce para além dos próprios limites a que está atrelado. Muito disso vem do vasto catálogo de sons que o produtor vai inserindo no desenvolvimento de cada faixa, sendo o melhor exemplo disso a magistral Ovelha Negra. Segunda música do álbum, a canção abre em meio a um arrasta-pé sintetizado, corre para um momento intimamente eletrônico, até explodir com o sample de Bicharada, dos Saltimbancos de Chico Buarque, momento em que Rolê atinge o ápice da criatividade no interior do disco.

Mais do que olhar para a cena eletrônica estrangeira ou para o cenário regional brasileiro, Psilosamples quer experimentar, e é justamente isso que ele faz no decorrer de todo o trabalho. Bom exemplo disso está em Meteorango Kid, que não apenas traz como fonte de inspiração o filme homônimo de 1969 (dirigido por André Luiz Oliveira), mas explora também o que caracteriza o hip-hop instrumental que tanto atiça a cena norte-americana. Grande parte da canção é desenvolvida em cima de beats duros e experimentos que se fossem menos suingados poderiam facilmente ser encontrados em algum álbum de gente como Flying Lotus ou mesmo Teebs.

Uma das grandes habilidades do produtor é a capacidade de promover um álbum que não apenas mantém o ouvinte cativo durante toda a execução, como é capaz de surpreender a cada nova curva ou inserção inimaginável que apenas a mente única de Zé Rolê parece saber como criar e tratar. Mental Surf é de longe o mais inventivo e peculiar dos discos que a cena nacional – não apenas a eletrônica – conseguiu apresentar em anos. Um recorte impregnado pela novidade e uma redescoberta daquilo que chamamos de “música brasileira”.

Mental Surf (2012, Desmonta)

Nota: 9.0
Para quem gosta de: Nego Moçambique, Four Tet e João Brasil
Ouça: o disco todo

Jornalista, criador do Música Instantânea e integrante do podcast Vamos Falar Sobre Música. Já passou por diferentes publicações de Editora Abril, foi editor de Cultura e Entretenimento no Huffington Post Brasil, colaborou com a Folha de S. Paulo e trabalhou com Brand Experience e Creative Copywriter em marcas como Itaú e QuintoAndar. Pai do Pudim, “ataca de DJ” nas horas vagas e adora ganhar discos de vinil de presente.

Jornalista, criador do Música Instantânea e integrante do podcast Vamos Falar Sobre Música. Já passou por diferentes publicações de Editora Abril, foi editor de Cultura e Entretenimento no Huffington Post Brasil, colaborou com a Folha de S. Paulo e trabalhou com Brand Experience e Creative Copywriter em marcas como Itaú e QuintoAndar. Pai do Pudim, “ataca de DJ” nas horas vagas e adora ganhar discos de vinil de presente.