Críticas

Kendrick Lamar

: "To Pimp a Butterfly"

Ano: 2015

Selo: Interscope / Aftermath / Top Dawg

Gênero: Hip-Hop, Rap

Para quem gosta de: ScHoolBoy Q, Ab-Soul

Ouça: Alright, i e King Kunta

9.5
9.5

Resenha: “To Pimp a Butterfly”, Kendrick Lamar

Ano: 2015

Selo: Interscope / Aftermath / Top Dawg

Gênero: Hip-Hop, Rap

Para quem gosta de: ScHoolBoy Q, Ab-Soul

Ouça: Alright, i e King Kunta

/ Por: Cleber Facchi 14/04/2015

Kunta Kinte, Wesley Snipes, escravidão, capitalismo, apropriação de cultura, preconceito racial e morte. Antes mesmo que a quarta faixa de To Pimp a Butterfly (2015, Interscope / Aftermath / Top Dawg) chegue ao final, Kendrick Lamar assume com o novo álbum de estúdio – o segundo sob o aval de uma grande gravadora, a Interscope -, um dos retratos mais honestos sobre o conceito de “dois pesos, duas medidas” que sufoca a comunidade negra dos Estados Unidos. Uma interpretação amarga, ainda que irônica, capaz de ultrapassar o território autoral do rapper de forma a colidir com o universo de Tupac Shakur, Michael Jackson, Alex Haley e outros “personagens” negros da cultura norte-americana.

Como explícito desde o último trabalho do rapper, o bem-sucedido good kid, m.A.A.d city (2012), To Pimp a Butterfly está longe de ser absorvido de forma imediata, em uma rápida audição. Trata-se de uma obra feita para ser degustada lentamente, talvez explorada, como um imenso jogo de referências e interpretações abertas ao ouvinte. Da inicial citação ao ator Wesley Snipes – preso entre 2010 e 2013 por conta de uma denúncia de fraude fiscal -, passando por referências ao cantor Michael Jackson, Malcom X, Nelson Mandela, exaltações à comunidade negra, além de trechos da obra do escritor Alex Haley –  Negras Raízes (1976) -, cada faixa se espalha em um acervo (quase) ilimitado de pistas, costurando décadas de segregação racial dentro e fora dos Estados Unidos.

Não por acaso a “estrutura narrativa” do álbum segue de forma distinta em relação ao trabalho de 2012. Enquanto good kid, m.A.A.d city foi vendido como um “roteiro de cinema” – conceito reforçado na utilização de diálogos e pequenas “cenas” encaixadas no interlúdio de cada composição -, com o novo disco é possível observar a formação de uma pequena base episódica, como um seriado, estrutura arquitetada com naturalidade no decorrer das faixas. São recortes precisos, temas pessoais ou mesmo histórias adaptadas, como se a cada novo capítulo “da série”, Lamar e convidados (como George Clinton, Pharrell Williams e Snoop Dogg) analisassem aspectos distintos de um mesmo universo temático.

Tamanha pluralidade de referências e conceitos garante ao ouvinte o encontro com uma obra muito mais dinâmica em relação ao trabalho exposto há três anos. Na mesma medida em que derrama versos sóbrios e provocativos – vide The Blacker the Berry, Mortal Man e Institutionalized -, Lamar garante espaço para que sentimentos e confissões particulares sejam ressaltadas com o passar do disco. Expressiva porção desse resultado está na dicotomia gerada pelas faixas u e i. Enquanto a primeira, um rap-funk-melancólico, sufoca em meio a versos embriagados, arrastando Lamar (e o próprio ouvinte) para um território de lamúrias – “Bitch everything is your fault” -, a segunda cresce como uma espécie de hino. Um jogo versos entusiasmados, motivacionais – “I love myself” – e que ainda resgatam trechos da adolescência do rapper pelas ruas de Compton, Califórnia.

A mesma flexibilidade se repete na construção dos arranjos e toda a estrutura musical pensada para o registro. Oposto ao minimalismo sombrio, por vezes sufocante exposto em good kid, m.A.A.d city, To Pimp a Butterfly é uma obra de conceitos grandiosos, musicalmente ampla e inquieta. Ainda que Dr. Dre seja o produtor executivo do álbum, grande parte da estrutura (musical) do trabalho parece fruto da interferência direta de Stephen Bruner (Thundercat) e Steve Ellison (Flying Lotus), colaboradores e instrumentistas ativos em grande parte das faixas.

A julgar explícito diálogo com elementos e conceitos típicos do Jazz, Soul e Funk dos anos 1970, grande parte do disco cresce como uma sequência natural do último registro de Ellison como Flying Lotus, You’re Dead! (2014) – no qual Lamar foi parceiro na música Never Catch Me. Sobram ainda parcerias curiosas, como a interferência do músico Sufjan Stevens em Hood Politics, diálogos com Smooth Criminal do cantor Michael Jackson em King Kunta, além de colagens – líricas e instrumentais – que atravessam a obra do coletivo The Isley Brothers (i), Tupac Shakur (Mortal Man) e Pharrell Williams (Alright).

Em produção desde 2012, meses após o lançamento de good kid, m.A.A.d city, To Pimp a Butterfly se mantém como uma obra atual, precisa. É possível observar o disco como uma síntese involuntária do debate racial gerado após a onda de violência na cidade de Ferguson, Missouri, ou mesmo pela polêmica em torno da parcial exclusão de indicações a negros no Oscar deste ano – o #OscarSoWhite. Ainda assim, o grande acerto e real beleza da presente obra de Kendrick Lamar não se concentra na manipulação detalhada do discurso, mas na forma como o rapper seduz o ouvinte sem que ele necessariamente sufoque em meio a conceitos políticos/sociais.

Da inicial Wesley’s Theory ao som funkeado, por vezes épico, de King Kunta, i e The Blacker the Berry, To Pimp a Butterfly sobrevive como uma obra acessível aos mais variados públicos; um trabalho de natureza comercial, porém, coerente com a proposta que se estende dos versos à capa simbólica que ostenta – uma fotografia provocativa, capaz de chamar a atenção do público mesmo antes que a primeira faixa do disco tenha início. Para aqueles que cravaram good kid, m.A.A.d city como disco da década, a insuperável obra-prima de Kendrick Lamar, talvez seja melhor pensar duas vezes.

 

Jornalista, criador do Música Instantânea e integrante do podcast Vamos Falar Sobre Música. Já passou por diferentes publicações de Editora Abril, foi editor de Cultura e Entretenimento no Huffington Post Brasil, colaborou com a Folha de S. Paulo e trabalhou com Brand Experience e Creative Copywriter em marcas como Itaú e QuintoAndar. Pai do Pudim, “ataca de DJ” nas horas vagas e adora ganhar discos de vinil de presente.

Jornalista, criador do Música Instantânea e integrante do podcast Vamos Falar Sobre Música. Já passou por diferentes publicações de Editora Abril, foi editor de Cultura e Entretenimento no Huffington Post Brasil, colaborou com a Folha de S. Paulo e trabalhou com Brand Experience e Creative Copywriter em marcas como Itaú e QuintoAndar. Pai do Pudim, “ataca de DJ” nas horas vagas e adora ganhar discos de vinil de presente.