O Príncipe do Hip-Hop e o mundo das fantasias retorcidas

/ Por: Cleber Facchi 11/05/2011

Por: Cleber Facchi

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Se existe uma parede que separa o excêntrico do genial, por mais resistente e sólida que ela seja, Kanye Omari West, ou simplesmente Kanye West, já a ultrapassou sem qualquer tipo de resistência. Atributos como “gênio”, “polêmico”, “louco”, “egocêntrico” e “agressivo” não faltam ao rapper e produtor norte-americano, que há tempos saiu do grupo dos “comuns” para brilhar e ocupar um espaço apenas seu dentro do mundo da música. Amado, respeitado e (principalmente) odiado em uma dose intensa de cada um desses sentimentos, West há mais de quinze anos faz dos versos uma porta de entrada para um universo de trevas e fantasias naturalmente retorcidas.

Ao contrário da maioria dos rappers que transformam a vida sofrida – fruto do crescimento em áreas suburbanas – em versos para as próprias composições, West não teve as mesmas adversidades que boa parte dos artistas que surgiram com ele no mesmo período. A infância com uma família de classe média – o pai, Ray West, Ex-Pantera Negra e fotógrafo de um jornal local; a mãe, Donda West, professora universitária habilitada em língua inglesa – contribuiu para uma boa educação do artista, assim como foi o caminho para que o mesmo adentrasse mais tarde a escola de belas artes, posteriormente abandonada para que seguisse carreira no hip-hop.

Embora tenha com The College Dropout (2004) sua estreia oficial no mundo da música, West veio desde 1996 se aventurando na produção de artistas variados do cenário hip-hop. Foi só no começo do novo século, quando se envolveu na produção de The Blueprint (2001), clássico disco de Jay-Z, que Kanye passou a ser melhor observado por toda a indústria musical. As boas críticas recebida por faixas como Izzo (H.O.V.A.), Heart of the City (Ain’t No Love) e Takeover, foram o estopim para que o rapper não apenas brilhasse como um dos grandes produtores de sua geração, mas que pudesse finalmente se aventurar em carreira solo, disseminando os próprios versos e a própria voz.

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Um grave acidente de carro e o consequente encontro com a fé em 2003 seria o combustível para a composições de West em seu primeiro trabalho individual. A religiosidade e as crenças do produtor, misturadas ao sampler de canções reconhecidas e toques de música clássica (!) trariam a fé em reformulações mais pop, como o que era encontrado em Jesus Walks, um quase gospel rap, onde a letra repleta de crenças e o coro de vocais ao fundo serviram para aproximar o rapper dos mais variados públicos. A fé, entretanto, não seria o ponto central do disco, que encontraria em trechos exaltando o amor e temas cotidianos seu verdadeiro elemento de centro.

Com o lançamento de meia dezena de singles – Through the Wire, Slow Jamz, All Falls Down, Jesus Walks, The New Workout Plan – a estreia de West acarretaria em uma série de criticas exaltadas por parte de toda a imprensa musical. O rapper dava inicio ali a um feito poucas vezes alcançado dentro do hip-hop: o de ser uma unanimidade. A mescla de música pop, com toques da soul music, o erudito com o rock, além de versos mais brandos e quase reflexivos fariam com que o trabalho de Kanye fosse reconhecido nas mais variados “setores da música”, atraindo o interesse de públicos distintos, mas que encontravam no trabalho do norte-americano um ponto de encontro, uma espécie de síntese de inúmeros sons, estilos e frequências.

Se a habilidade de West estava garantida logo na estreia, as aventuras pelo terreno da música erudita em seu segundo disco dariam à imprensa e ao público uma nova forma de ver o hip-hop. Talvez apenas os trabalhos de Jay-Z e do Outkast sejam capazes de barrar o brilhantismo de Last Registration (2005), um dos, ou talvez o trabalho mais genial lançado na primeira metade dos anos 2000. É Hip-Hop, mas também é musica clássica, é soul music, mas também é pop, enfim, um conjunto de múltiplos elementos que a principio poderiam soar tão distintos entre si, mas que dentro do segundo disco de Kanye parecem confortavelmente instalados e dialogando entre si.

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A ideia até parece complexa: durante pouco mais de um ano, West e o produtor Jon Brion circularam juntos em diversos estúdios por todos os Estados Unidos, registrando samplers, criando texturas e versos em cima do instrumental sofisticado do convidado. O resultado se revela em um achado nada complexo, mas sim um registro suave de 21 canções, onde o rótulo de “perfeito” é simplesmente o mais coerente ao trabalho. Os versos de West se cruzam os os pianos de Brion (que entre inúmeros registros é o responsável pela trilha sonora do filme Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças) através de uma simbiose única, dotada de nuances leves e um incrível lirismo.

A parceria, entretanto não se estabelece apenas entre os dois cabeças do projeto, que encontraram em um corpo variado de outros músicos a energia que faltava ao trabalho. Dessa forma Adam Levine do Maroon 5 vem para dar um toque de radiofônico e fácil à delicada Heard ‘Hem Say, enquanto o ator e músico Jamie Foxx faz de Gold Digger (com trechos de I Got a Woman de Ray Charles) uma das mais belas faixas de todo o disco. O álbum se completa com a inclusão do então novato Lupe Fiasco, os renomados rappers Common, Paul Wall, The Game e Nas, sem mencionar o remix de Diamonds from Sierra Leone feito pelo parceiro Jay-Z.

A beleza do registro confirmava o obvio e posicionava Kanye West dentro do alto escalão dos grandes nomes do rap contemporâneo. O produtor acertava de todas as maneiras: A critica o adorava, os discos vendiam como água, estava sempre como número um nas paradas de sucesso e seus shows tinham os ingressos esgotados em minutos. Ao mesmo tempo em que trilhava seu caminho, o rapper trazia consigo uma infinidade de novos nomes, todos discípulos fiéis dos ensinamentos do artista, entretanto, a visível perseguição por parte da mídia e todo o peso do mainstream começavam a pairar sobre o rapper, o que deixava dúvidas sobre seus futuros lançamentos.

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Foram necessários dois anos até que West retornasse com seu terceiro disco, e quem esperava por uma continuação do glorioso Last Registration teve em Graduation (2007) uma grande surpresa. A música clássica foi substituída pela eletrônica, a soul music em boa parte pelo pop, e o hip-hop quase virou rock, nesse caso o rock de arena. Através do sampler de Harder, Better, Faster, Stronger da dupla francesa Daft Punk, West fez de Stronger uma das músicas mais tocadas daquele ano, tomando de assalto as paradas musicais do mundo todo e recebendo o merecido grammy de “Best Rap Solo Performance”, apresentando o artista para qualquer um que ainda desconhecesse seu trabalho.

Tudo é grande em Graduation, entretanto não há como negar que todas as faixas se apresentam de forma muito mais sintética do que nos dois primeiros registros, torna-se inexistente a unidade com que o rapper amarrava seus trabalhos, mas se mantém presente a genialidade do artista em seus versos. O peso da fama toma contornos nada moderados dentro do disco, com o rapper se entregando em uma verdadeira egotrip, tornando os temas cotidianos em quase relatos de sua vida, elaborando exaltações ao dinheiro e aos luxos dos quais tinha acesso. Kanye estava na crista da onda, assistindo tudo de camarote, como um pequeno rei ou deus do hip-hop, isso até que o chão sob os seus pés simplesmente desabasse.

Onde tudo antes era beleza, logo se converteu em trevas com a perda da mãe e empresária em 10 de novembro de 2007, vítima de complicações cardíacas após a execução de uma cirurgia plástica. A nuvem negra que se estabeleceria sobre a carreira do rapper estava só começando a se formar. No começo do ano seguinte West romperia com a namorada Alexis Phifer, com quem mantinha um relacionamento desde 2002 e com isso teria todos os elementos para dar início a seu quarto disco de estúdio: o sofrido 808s & Heartbreak (2008).

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Munido de uma bateria eletrônica Roland 808 (equipamento que dá nome ao disco) e afundado em densas camadas de Auto-Tune, West resolveu em seu quarto disco envergar por uma nova via: a de cantor. Ao contrário dos trabalhos anteriores, onde o rapper chegava protegido por uma versátil sequência de batidas e sons dinâmicos, no disco de 2008 há uma entrega total a um clima sufocante. Kanye aparece dando vida a lamentos relacionados às perdas do passado recente, em um disco, que embora não trouxesse a mesma energia e criatividade exposta nos lançamentos anteriores, acabava por revelar a figura de um artista desprotegido, sincero e se entregando em tristezas típicas de um puro sofredor.

Ao mesmo tempo em que se ocultava melancólico através de faixas como Love Lockdown e Heartless derramando versos como “So you never know, never never know/ Never know enough, ‘til it’s over, love” e “How could you be so Dr. Evil/ You’re bringing out a side of/ me that I don’t know”, West entrava em um declínio dentro de sua própria carreira artística. A cada nova participação na mídia, o rapper entregava de maneira clara diversos apontamentos de que estava não apenas sofrendo por amor, mas que estava tomado por seu ego e por princípios de insanidade. O ápice dos acontecimentos veio no VMA de 2009, quando West interrompeu o discurso da cantora country Taylor Swift para dizer que o troféu recebido pela musicista era injusto e que o prêmio na verdade deveria ser entregue à Beyoncé. A repercussão dos acontecimentos tomou o mundo, e entre lamentos, desculpas e choros, o rapper encontrou no “exílio” a salvação.

Durante quase um ano Kanye ficou “trancafiado” em seu estúdio particular na cidade de Honolulu no Hawaii, onde encontrou nos trabalhos de Gil-Scott Heron e Nina Simone o conforto e a motivação para dar início àquela que seria sua obra máxima: My Beautiful Dark Twisted Fantasy (2010). Previamente intitulado de Good Ass Job, o quinto disco do rapper se não era pra ser acabou se transformando em um verdadeiro delírio épico e fantástico da própria consciência de West, guiando o ouvinte para dentro de um universo egocêntrico e fantasioso que só poderia escapar da mente do rapper. Em 13 faixas, o compositor passeia por todos os elementos sonoros que compõem sua carreira, do Auto-Tune à música erudita, da soul music ao experimentalismo, fazendo com que o álbum seja um conjunto de instabilidades emocionais e confessionais.

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A maior prova da “viagem” de West dentro desse trabalho está no videoclipe de Runaway, praticamente um curta metragem com mais de trinta minutos de duração, onde o rapper dá vida a um roteiro (escrito pelo próprio) repleto de elementos fantasiosos temperados pelas mesmas canções do álbum. Assim como nos anteriores registros, Kanye encontrou no suporte de vários nomes da música pop e do hip-hop contemporâneo o elemento de liga que faltava ao álbum. Entre os vários convidados estão Rihanna, o discípulo Kid Cudi, o eterno parceiro Jay Z, Pusha T, os indies do Bon Iver, além de um poderoso grupo de produtores, embora seja o próprio rapper seu maior guia.

Com o novo álbum West alcançava a redenção, grande parte das listas de melhores do ano, o elogio da crítica e o louvor dos fãs. O deus caído, ou o “príncipe do hip-hop” (como a imprensa norte-americana costuma nomear) estava de volta, mesclando suas instabilidades psíquicas com sua genialidade, mostrando não existir barreira para sua arte. O rapper não apenas havia esquecido as adversidades do passado (ou superado, talvez) como se mostrava tão intenso quanto fora no começo da carreira. Os limites do panorama fantasioso de Kanye West estavam apenas se ampliando, e todos, sem exceção estão presos dentro dele.

Jornalista, criador do Música Instantânea e integrante do podcast Vamos Falar Sobre Música. Já passou por diferentes publicações de Editora Abril, foi editor de Cultura e Entretenimento no Huffington Post Brasil, colaborou com a Folha de S. Paulo e trabalhou com Brand Experience e Creative Copywriter em marcas como Itaú e QuintoAndar. Pai do Pudim, “ataca de DJ” nas horas vagas e adora ganhar discos de vinil de presente.

Jornalista, criador do Música Instantânea e integrante do podcast Vamos Falar Sobre Música. Já passou por diferentes publicações de Editora Abril, foi editor de Cultura e Entretenimento no Huffington Post Brasil, colaborou com a Folha de S. Paulo e trabalhou com Brand Experience e Creative Copywriter em marcas como Itaú e QuintoAndar. Pai do Pudim, “ataca de DJ” nas horas vagas e adora ganhar discos de vinil de presente.