Passei um mês sem ouvir música e (quase) enlouqueci

/ Por: Cleber Facchi 24/03/2015

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“Sem a música, a vida seria um erro”.

A frase de Friedrich Nietzsche sempre me pareceu um clichê funcional, capaz de sintetizar tamanho sentimento de completude imposto pela música na vida das pessoas. Ou pelo menos na minha. Mas será que a ausência de melodias, acordes ou mísero refrão seria capaz de transformar a vida, o universo e tudo mais em um erro imenso?

Que tal experimentar? Decidi passar um mês sem ouvir música.

Embora incapaz de tocar Será da Legião Urbana no violão – ou em qualquer instrumento -, me considero um aficionado por música. A música sempre foi parte substancial da minha vida. Do instante em que Nevermind do Nirvana me foi apresentado, aos 13 anos, até alcançar a vida adulta, meus ouvidos não tiveram sossego. Durmo e acordo ouvindo música. Faço playlists para tudo. Cozinhar, viajar, trabalho, banho. Até sexo – cadê minha discografia do Portishead ou seleção de R&B?

Não importa o gênero: Rock, pop, eletrônica, jazz, funk (carioca), Hip-Hop, sertanejo, metal e estilos tão complexos que convertem até vômito em música. Descobrir novas sonoridades sempre foi uma experiência fascinante. “Música ruim”? Nada melhor do que uma tarde ao som de clássicos dos anos 1980/1990. Contrário ao pensamento de “não se faz mais música como antigamente”, o novo sempre me parece mais atrativo. Preferências existem. Preconceito ou restrições? Jamais.

Ouço entre 10 a 15 álbuns por dia. Nada de pular faixas. Uma lista de clássicos pinçados de diferentes décadas, discos favoritos e uma parcela expressiva de obras recentes, “matéria-prima” para o conteúdo do blog que abasteço (diariamente) desde 2010. Desafio aceito? Aproveitei ao máximo. Uma semana corrida, antecipando textos, especiais, listas e ouvindo tudo aquilo que mais gosto.

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Silêncio.
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1ª Semana

Inicialmente, as regras: toda forma de música estava proibida. Nada de discos, canções avulsas, clipes, shows, artistas de rua e cantorias no trabalho. Vinhetas, comerciais de TV, vídeos no Youtube e podcasts seriam controlados, com trechos musicais adiantados ou silenciados. Episódio musical d’Os Simpsons na FOX? Hora de mudar o canal. Nada de festas, bar com os amigos e propagandas com temas musicais extensos. Para auxiliar na busca pelo silêncio: protetores auriculares moldáveis, de silicone, sempre protegidos por fones de ouvido e abafadores de ruídos. Para me concentrar no trabalho, apenas o barulho de chuva e outros “ruídos” virtuais.

Na primeira semana, uma curiosa sensação de desconforto e, ao mesmo tempo, “alívio” tomou conta da minha mente. Durante a faculdade, desenvolvi o hábito de passar a noite escrevendo. Um ou dois novos discos, produzir um texto de resenhas e notícias para o blog. Com a ausência de música, ocupei o espaço das 18:00 as 22:00 com passeios de bicicleta, caminhadas noturnas e até mesmo zumba pelo XBOX – sem música, claro. Para “distrair” os ouvidos: um acervo de podcasts e horas (sofríveis) pela CBN. Com exceção de novos lançamentos e discos que surgiam para download no feed do Facebook, tudo parecia tranquilo.

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2ª Semana

Depois de uma (extensa) maratona de Adventure Time na Netflix, pizza e cerveja: preguiça. Exercícios físicos se transformaram em receitas de hambúrguer e horas enrolando nhoque caseiro. Queria ouvir música. Perdi a conta de quantas vezes limpei meu quarto, organizando em ordem alfabética (ou cor) cada vinil da minha coleção. Queria ouvir música. Ler em silêncio, sem Sigur Rós, Brian Eno e Miles Davis parecia um inferno. Eu precisava ouvir música.

A cada música compartilhada pelos amigos: tentação. Atualizada diariamente, minha lista de “novos lançamentos” logo foi deletada. Precisei esquecer Stereogum, Rolling Stone, Gorilla Vs. Bear, Pitchfork e qualquer site de música. No Facebook: “unlikes” e “hides”.
Nada que supere o tormento de mais um dia de trabalho.

Ruídos, diálogos, riso, o barulho do teclado, tosses ou os malditos comentários na Globo News: sem música, finalizar uma única frase dentro de qualquer redação é praticamente impossível. A concentração morre em segundos, a cada “você viu este vídeo?“. “Trouxe um chocolate para você“, disse o amigo atencioso, com seu pescoço visível, hipnótico, pronto para o estrangulamento com o cabo de energia do Macbook. Desculpe: eu só queria ouvir música.

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3ª Semana

De maneira involuntária, na terceira semana de experimento assumi uma postura quase “mecânica”, fria, marcada pelo desinteresse. Nada de ouvir podcasts. Abandonei livros. Chega de séries, filmes e programas de TV. No trabalho: produção baixa, textos “quadrados”, previsíveis, produzidos com dificuldade e lentidão. Perdi completamente o interesse pelas pessoas, meu senso de humor – sempre exagerado – e a vontade de fazer qualquer coisa.

O sono aumentou. De fato, passei a dormir de forma excessiva. Ao chegar em casa, por volta das 18:00h, ligava a TV, baixava o volume e apagava. Porém, oposto ao esperado relaxamento, apenas cansaço. Noites cada vez mais longas, ocupadas por sonhos tristes e pesadelos. Ao despertar, nada de Heroes, Don’t Stop Me Now ou Champion. Só o ruído seco e continuo do iPhone vibrando. Levantar da cama, tomar banho e comer ficou difícil. Não sentia vontade de fazer mais nada. Vez ou outra, passava horas ouvindo músicas e até discografias inteiras no iTunes. Sempre em silêncio. Aos poucos, até meu interesse pela música deixou de existir.

Sem perceber, durante o mesmo período de angústia, minha percepção de música começou a mudar. Passei a ouvir com maior atenção, fascinado e atento, isolando cada ruído. Do bip do microondas ao canto do Bem-te-vi na janela, do barulho dos carros ao apito da máquina de lavar, cada fragmento acústico, talvez insignificante, atiçava minha curiosidade e uma constante sensação de acolhimento. Longe de analisar discografias, críticas, textos e livros técnicos, pela “primeira vez”, eu estava ouvindo música. De verdade.

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4ª Semana

Mesmo com uma nova percepção, ainda restava uma semana para o fim do experimento. Deteriorada pela combinação de fones de ouvido, volume alto, tímpano lesionado por cotonetes e a convivência em família italiana, três semanas de quietude foram suficientes para recuperar minha desgastada audição. Ouvidos atentos? Como resistir aos encantos de Tame Impala, Kendrick Lamar, Kanye West e toda a avalanche de músicas e discos inéditos que cobriram o ato final da semana de “isolamento”? Composições ainda quentes, anunciadas com (irritante) entusiasmo pelos amigos no Facebook.

Mais difícil (e cômico) que isso? Apenas o convite para “atacar de DJ” em uma festa na empresa onde trabalho. Com protetores auriculares de silicone, dois em cada ouvido, ocupei possíveis brechas, evitando ao máximo o fluxo de som. Nada além de vibrações e batidas, sem qualquer chance de ouvir melodias. Fiel ao desafio de “um mês sem música”, evitei a interferência do técnico de som, observando apenas a alteração dos gráficos em cada música. Para dificultar, deixei meu Macbook em casa para tocar no notebook do amigo que me convidou para a festa. Número limitado de músicas, Virtual DJ configurado de forma estranha, garrafas de Heineken pela mesa e o mais absoluto silêncio durante 1h10min. Para minha surpresa, possivelmente efeito do álcool, dois amigos próximos afirmavam com convicção: nunca antes eu havia tocado tão bem.

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Fim do silêncio.
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Finalmente livre. Terríveis 30 dias (e noites) em “silêncio”, afastado de tudo aquilo que mais gosto. E agora? Qual disco ouvir? Quieto, distante do vasto acervo do iTunes, observei apenas minha coleção de vinis. Ainda fascinado pelo presente, com uma lista enorme de (novos) registros para ouvir, não pensei duas vezes, partindo em direção ao meu disco favorito:

Depois de passar um mês sem música…

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Conheço todos os versos, a hora exata de cada acorde, batida ou quando entra o coro de vozes em God Only Knows, porém, nunca antes Pet Sounds (1967) me pareceu tão claro, limpo e completamente inédito. A mesma percepção durante o “reencontro” com Kind of Blue, Funeral, Acabou Chorare, Revolver, OK Computer, Fa-Tal – Gal a Todo Vapor, Daydream, Ventura e If You’re Feeling Sinister. Discos que ocuparam meus ouvidos na última década, atentamente dissecados, porém, completamente novos, envolventes, depois de quatro semana em parcial silêncio.

“Sem a música, a vida seria um erro”.

Depois de um mês sem música, evitando todo e qualquer registro melódico – seja ele de voz ou instrumental -, a frase do pensador alemão está longe de ser interpretada apenas como um “clichê funcional”. De fato, soa como um erro grave. Gravíssimo. Sem a música, a vida não seria apenas um erro como defende Nietzsche. Sem música, a vida seria completamente insuportável.

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Texto originalmente publicado no Brasil Post.

Jornalista, criador do Música Instantânea e integrante do podcast Vamos Falar Sobre Música. Já passou por diferentes publicações de Editora Abril, foi editor de Cultura e Entretenimento no Huffington Post Brasil, colaborou com a Folha de S. Paulo e trabalhou com Brand Experience e Creative Copywriter em marcas como Itaú e QuintoAndar. Pai do Pudim, “ataca de DJ” nas horas vagas e adora ganhar discos de vinil de presente.

Jornalista, criador do Música Instantânea e integrante do podcast Vamos Falar Sobre Música. Já passou por diferentes publicações de Editora Abril, foi editor de Cultura e Entretenimento no Huffington Post Brasil, colaborou com a Folha de S. Paulo e trabalhou com Brand Experience e Creative Copywriter em marcas como Itaú e QuintoAndar. Pai do Pudim, “ataca de DJ” nas horas vagas e adora ganhar discos de vinil de presente.